domingo, 8 de maio de 2011

Conto: Um Terno para K, de Fernando Fábio Fiorese

UM TERNO PARA K.*

Quem és afinal entre os homens? Quantos anos tens, meu caro?
                                 Que idade tinhas quando o Medo chegou?
Xenófanes de Colofão

I


Os gestos exagerados do ajudante, um homenzinho de origem russa que se recusara a aprender o idioma do país de exílio, foram mais que suficientes para conduzir o cliente até a bancada onde o alfaiate, com uma elegância duvidosa, manuseava metro, réguas e giz. Não fora pelo cenário desleixado, um amontoado de manequins, prateleiras, retalhos, caixas de papelão, cabides, peças de fazenda e cadeiras, até a iluminação, incidindo sobre a calva do alfaiate e destacando um lápis azul enfiado na orelha direita, poderia sugerir uma cena teatral, particularmente quando num gesto largo o braço daquele homem, encurvado menos pelos anos do que pela profissão, se erguia descrevendo um arco e os dedos polegar, indicador e médio fechavam sobre a ponta do lápis para lentamente trazê-lo, já em posição de escrita, até um pequeno bloco de notas sobre a mesa. O barulho dos passos do ajudante nos degraus da escada que levava ao sótão fizeram com que alfaiate e cliente elevassem o tom de voz para os cumprimentos de praxe, mas logo voltaram a falar na altura adequada ao ambiente.
Como o alfaiate estivesse acostumado com a impaciência que caracterizava a maioria dos fregueses, disse-lhe que, em tal ofício, menos rigor não se admite. “Ainda quando a encomenda seja para novembro, não descuro de uma severa matemática nem me permito afetar pela urgência do cliente, o qual, durante a apuração das medidas, deve se portar de acordo com as instruções exaradas verbalmente ou através de meneios de cabeça e toques executados com as pontas dos dedos nas partes apropriadas dos membros inferiores e superiores.” Como o rosto do cliente não denotasse enfado, os olhos inclusive pareciam trair certo interesse, o alfaiate prosseguiu, ressaltando que nada seria aviado com presteza de quitanda, posto que, à roda do metro, cumpre à mão o manuseio adequado dos instrumentos de medição e ao olho vigiar a postura do freguês, averiguando quaisquer desvios nos padrões anatômicos, demorando nos elementos mais suscetíveis a equívocos, avançando conforme os procedimentos técnicos consagrados e conferindo exaustivamente as anotações, até que a cifra confirme e ateste a medida do homem e sua hora.
Enquanto tirava as medidas, o cliente mudando de posição conforme as instruções, o alfaiate aproveitou para explicar que o risco e o corte são atividades de extrema complexidade. “Em ambas, urge ter completo domínio sobre quaisquer tremores ou hesitações – em geral advindos de elementos perturbadores externos –, de forma a evitar transtornos no encaixe preciso das peças, assegurando rebarbas nos limites do aceitável, tendo em vista as correções métricas necessárias – incluindo alargamentos e pences, em geral ínfimos –, consoante os princípios da lei de dilatação natural dos corpos expostos a variações de humor, temperatura e umidade.” Antes de desfazer a última postura, pernas abertas e mãos estendidas ao longo do corpo, o freguês foi informado de que, após o corte, é recomendável o chuleio imediato das bordas mais propensas a esgarçar, atentando principalmente para as formas curvas e as peças de corte transversal em relação à trama do tecido; entretanto, tal procedimento tem a eficácia pretendida apenas quando acompanhado da manipulação adequada da fazenda.
Durante todo o processo de aferição das medidas, os leves meneios de cabeça do cliente, duas ou três vezes acompanhados da expressão “Sem dúvida”,  os olhos fixos em algum ponto não muito distante, a respiração tranqüila e a estrita observância das instruções deram ao alfaiate – a ponto de irritar-se com os ruídos que vinham do sótão, temendo que pudessem perturbar aquela sóbria compleição, em tudo adequada à sua atividade – a certeza de que ele devotava, senão apreço, ao menos um interesse singular pela técnica de confecção de ternos. “Peço ao senhor que não se sobressalte com o barulho. Deve ter reparado na óbvia inabilidade de meu ajudante, um sujeito inacabado tanto física quanto mentalmente. Ainda na semana passada espatifou um prato e quase que eu alfineto a axila de um freguês.” Mas, como alguns dias depois o alfaiate confidenciaria a um colega de ofício, nada parecia afetar aquele homem, completamente absorvido pelas palavras e instruções; enfim, um freguês cioso da submissão que se exige para que as medidas sejam apuradas com a necessária precisão. 
Assim, nem o movimento ostensivo da mão espalmada do cliente em sua direção nem a postura enviesada do corpo, indicando a intenção de deixar o atelier, impediram que o alfaiate adiasse a despedida com perguntas de todo desnecessárias, apenas para secundá-las com novas observações acerca de sua especialística: “Colocar um terno de pé impõe uma habilidade comparável apenas à do prestidigitador; em muito mais arriscada, pois que lidamos com instrumentos pontiagudos e cortantes, e tal tarefa põe à prova não apenas as mãos e a memória, mas também a boca, o raciocínio matemático e, principalmente, os olhos – os olhos do próprio alfaiate, muito mais próximos e rigorosos que os de qualquer espectador.”  Enquanto consultava um grande caderno de capa preta para verificar data e hora mais propícias à primeira prova, o alfaiate acrescentou que, em geral, a substituição de peças cortadas de forma incorreta pode comprometer todo o trabalho, devido a variações tanto de tonalidade quanto de espessura da trama. “As margens de erro são infinitesimais, quase inexistentes, e a rigidez do manequim serve exatamente para denunciar qualquer equívoco, seja de medida, corte ou montagem.”
O cliente já se dirigia para a porta quando os passos do ajudante descendo a escada fizeram-no demorar um pouco mais, o tempo suficiente para estender-lhe a mão e responder a alguns gestos convencionais. Desinteressado da cena, o alfaiate retomou os seus afazeres, conferindo com o metro as medidas das peças já riscadas; mas como o diálogo pantomímico do cliente e do ajudante se prolongasse para além do esperado, agora incluindo ruídos vocais e onomatopéias, ele inclinou a cabeça para trás e ficou observando a excitação que tomava conta de ambos. Do ajudante não esperava menos, principalmente porque encontrara alguém que lhe concedia alguma atenção; no entanto, os gestos excessivos do cliente não lembravam em nada o homem cordato que tanto o impressionara. Os dois permaneceram parados ali por mais alguns minutos até que o alfaiate pigarreou repetidas vezes, o que foi suficiente para que o ajudante se despedisse do cliente, conduzindo-o à porta, não sem antes gaguejar a única frase que sabia na nossa língua – “Todos procuram alcançar a porta” –, seguida de um risinho de tal modo irritante que foi prontamente interrompido por outros tantos pigarros do alfaiate.

II


No dia aprazado para a primeira prova, como sempre o alfaiate orientou o ajudante para que permanecesse no sótão chuleando peças recém-cortadas, de forma a garantir o ambiente propício a uma tarefa que requeria extrema concentração; qualquer ruído, incluindo ranger de dentes, manusear de talheres, girar de maçaneta, zumbir de insetos ou pingar de torneira, e todo o processo podia desandar. Mal a porta se fechou atrás do cliente e o alfaiate, sem ao menos cumprimentá-lo, apressou-se em travar a fechadura e afixar no vidro a tabuleta de fechado; apenas depois dirigiu-lhe as palavras habituais, sem conseguir disfarçar a respiração ofegante de quem não está acostumado àquela rapidez de movimentos ou de quem se excita demasiado com a responsabilidade que o espera.
Enquanto o freguês andava lentamente em direção à bancada, o alfaiate cruzou os braços sobre o peito, inclinou a cabeça para trás e permaneceu parado por alguns instantes, tanto para recuperar o fôlego quanto para observar o terno cinza que o cliente trajava; era um terno sóbrio, arremate impecável, caimento perfeito – com certeza obra de um mestre do ofício, embora a sua rigorosa inspeção detectasse áreas já puídas no colarinho e nos punhos do paletó, denunciando os anos de uso. “O senhor se importaria de revelar o autor desta obra-prima que está vestindo?” Porque estivesse empenhado em adaptar-se fisicamente ao atelier ou procurasse indícios do ajudante entre a profusão de objetos em desalinho ou tentasse adivinhar qual dos manequins usava o seu futuro terno, o freguês demorou para responder.
“Não, não saberia dizê-lo, pois o herdei de meu pai, como de resto todos os ternos que usei até a presente data. Este que contratei ao senhor será o primeiro sob medida, embora seja razoável incluir os ternos de meu pai nesta categoria, pois que nunca foi necessário fazer quaisquer ajustes; hoje sei que menos pela semelhança de nossas anatomias do que pela maestria do alfaiate. Um terno deve sobreviver ao homem e suas medidas.” Apesar de inenfáticas como num texto jornalístico, as palavras do cliente transtornaram o rosto do alfaiate, acrescentando-lhe algumas rugas de preocupação; em primeiro lugar, porque alteravam, mesmo que momentaneamente, a impressão que ficara do primeiro encontro, de um homem a tal ponto centrado em si mesmo que prescindia de palavras e gestos, a não ser os estritamente necessários para fazer-se perceber quando assim desejava; em segundo lugar (e principalmente), porque revelavam a expectativa por um grau de perfeição cuja altitude o alfaiate temia não ter pulmões para suportar, posto que, embora tendo como meta o código dos grandes mestres do passado, sabia que a vida moderna tinha embaralhado para sempre os antigos métodos e que as suas próprias limitações não eram poucas.
Com o intuito de se recompor, o alfaiate prolongou ao máximo o tempo gasto para percorrer a distância entre a porta e a bancada, o queixo enterrado no peito como que procurando alguma coisa entre os retalhos que faziam do piso do atelier uma abreviatura morta de todos os paletós, coletes e calças que saíram dali em anos de trabalho. Assim que tomou seu lugar atrás da bancada, móvel que pelas dimensões e robustez lhe emprestava uma certa dignidade, mantendo os clientes na distância adequada, dissiparam-se as preocupações do alfaiate e ele pôde erguer o rosto em direção ao freguês sem medo de transmitir-lhe qualquer sensação que pudesse perturbar a tranqüilidade física e espiritual necessária à primeira prova. 
Com o ricto indecifrável de quem inaugura a estátua de um herói, o alfaiate estendeu o braço direito na direção de um dos manequins e lentamente puxou o lençol branco que ocultava a encomenda; seus olhos não surpreenderam qualquer movimento no rosto do cliente, nenhum indício de surpresa ou de decepção – e isso, ao invés de perturbá-lo, deu-lhe a certeza de que tratava-se do mesmo homem que, semanas antes, submetera o próprio corpo ao rigor da fita métrica, de forma tão dócil e serena que dir-se-ia estar por completo dentro de si. Enquanto vestia o dedal com uma lentidão solene e iniciava a desmontagem do terno no manequim, espetando os alfinetes na almofada e dispondo as peças meticulosamente sobre a bancada, o alfaiate orientou o freguês para que tirasse o paletó, indicando-lhe um cabide.
“Podemos dar início à primeira prova” – determinou o alfaiate com uma confiança que parecia declinar na medida que avançava a frase, indicando que as rugas de preocupação estavam apenas maquiladas pelo sangue-frio próprio ao ofício –, “mas entenda que aqui se põe à prova não apenas os méritos de minha especialística, seja na aferição das medidas, no risco, no corte, na montagem ou no alinhavo, mas também as infrações, por mais ínfimas e decerto inconscientes, que o senhor conseguiu perpetrar contra as normas que regulam a postura de um cliente enquanto se submete à medição.”
Com movimentos quase mecânicos, de tão precisos e econômicos, o alfaiate se entregou à tarefa de vestir no freguês o corpo do paletó, o que impunha uma cautela – ao menos eram estes os modelos que procurava seguir – em muito análoga à do cirurgião e do relojoeiro, e oferecia o tempo e a atenção necessários para explicar ao cliente que também estavam sendo postos à prova, além dos fatores humanos, todos os materiais e instrumentos empregados até aquela etapa do processo, muitos deles sensíveis a mudanças climáticas e de outras espécies. “E não nos esqueçamos” – disse com uma tentativa de sorriso –, “não nos esqueçamos nunca do imponderável.”
Após a operação realizada para fixar as mangas do paletó – tão meticulosa a ponto de exigir que a visão de conjunto fosse momentaneamente suspensa em benefício de uma atenção restrita aos detalhes e ao transporte dos alfinetes dos lábios para o pano –, o cliente foi orientado a adotar uma postura ereta, enquanto o alfaiate se afastava uns dois ou três metros para inspecionar o ajuste das peças. Apenas ao custo de alguns pigarros e de um tique que, antes de atingir as pálpebras, ele escondia na rótula esquerda, o alfaiate conseguiu conter o grito, transformando-o numa exclamação que logo foi submetida pelos dentes e lentamente desceu para o estômago, restando na boca apenas um gosto semelhante ao de pernoite com muito café e tabaco. Nem os termos do mais fabuloso bestiário medieval ou os croquis dos instrumentos de suplício da Santa Inquisição ou as gravuras de um catálogo das máquinas infernais do século XVIII serviriam de analogon descritivo para aquele objeto cujos alinhavos e peças pareciam em litígio com todas as cifras.
Da distância em que se encontrava e sob a luz difusa do atelier, ao alfaiate ocorreu encontrar naquele strafalcione – palavra que o seu furibondo maestro-sarto gritava antes de retalhar a navalhadas as experiências mal-sucedidas dos aprendizes – semelhanças com as “pinturas negras” e os Disparates de Goya, mas a lembrança do mestre italiano logo o fez buscar analogias nas anamorfoses e composições bizarras de Arcimboldo, apesar da ausência de cor e embora nenhum dos ângulos que adotara para observar revelasse quaisquer aspectos ocultos, a não ser o desenho impreciso de objetos que assombravam a sua visão para logo se dissiparem no emaranhado de panos, linhas e alfinetes. A absoluta falta de apuro plástico daquela extravagância não permitia ao alfaiate imaginá-la sequer entre os objetos da Kunst-und-Wunderkammer de Maximiliano II, mas quem sabe o seu aspecto grotesco e insólito pudesse garantir-lhe ao menos um discreto nicho no lendário gabinete de curiosidades de Ferdinando de Tirol, à sombra dos mais medíocres plagiários arcimboldescos.
Do ponto de vista mais favorável, poder-se-ia imaginar que uma bigorna oprimia o peito do cliente e, como os alfinetes se insurgissem contra aquela bizarria, o ombro esquerdo assemelhava uma anêmona e o direito, um ouriço; enquanto o abdômen do supliciado parecia convertido no cabrestante de um porto decadente, ataviado de cordas inúteis e esfiapadas, e as mangas mudavam os braços em hastes de um compasso de espessura. Outros ângulos de visão revelavam analogias com objetos híbridos, resultantes do engate de um guarda-chuva com um ancinho ou da acoplagem entre escada, prensa e saca-rolhas. Quanto às costas, o tecido amarfanhado lembrava ora uma panóplia cumulada de animais e plantas exóticos, ora o balão estratosférico do professor Piccard, ora um estandarte roto pela batalha. Um menino de dez anos asfixiaria naquele disparate de panos, mas o cliente permanecia impassível, talvez porque a sua inexperiência em provas deste tipo não lhe permitisse julgar o despropósito da obra, talvez porque confiasse cegamente na competência do alfaiate, talvez porque creditasse à posição enviesada do espelho do atelier as deformações do paletó.
“A primeira prova se presta ao remate de muitos males” – disse o alfaiate enquanto às pressas cuidava de desmontar o paletó, jogando as peças sobre a bancada. “Creio que nos precipitamos” – o uso da primeira pessoa do plural era quase uma tentativa de dividir com o freguês a responsabilidade por aquele absurdo –, “pois a calça e o colete não estavam preparados para esta primeira prova, além do que devemos conferir algumas medidas.” A resposta inenfática do cliente – “Sem dúvida” – perturbou o alfaiate, mas não o suficiente para impedi-lo de tomar as medidas do colarinho, dos ombros e das costas com atenção redobrada, comparando-as com as anotações anteriores. “Penso que dirimimos todas as dúvidas, estamos em conformidade com as cifras” – afirmou o alfaiate sem atentar para a resposta habitual do freguês, tão empenhado que estava em encaminhá-lo à porta e, de resto, aliviado por não haver, excetuando-se o discreto cliente, testemunhas da sua tribulação, sequer o ajudante.   

III

                    
Quisera o alfaiate dominar as ciências ocultas para, na segunda prova, reconstituir até mesmo as condições metafísicas em que ocorrera o seu primeiro contato com o cliente. Como não detinha tais conhecimentos, tratou de reproduzir nos mínimos detalhes as circunstâncias materiais daquele encontro, sem descurar de quaisquer variáveis; estava certo de que, em sendo possível ao menos a simulação destas, poderia realizar o que acreditava ser a culminância de toda uma vida dedicada à alfaiataria: a coincidentia oppositorum do cliente e do terno. Dedicou semanas a conferir e confrontar as medidas anotadas e transpostas para o tecido, não encontrando qualquer equívoco ou contradição; por suspeitar da precisão da fita métrica e das réguas, não titubeou em submetê-las à inspeção de um metrologista bastante discreto; obrigou o ajudante a lembrar e a repetir exaustivamente cada movimento, cada gesto, cada ruído, por mínimo que fosse – até que os seguidos ensaios o transformaram numa espécie de fantoche em tamanho natural, cumprindo mecanicamente as marcações definidas pelo diretor improvisado.
Na véspera da segunda prova, o alfaiate examinou em minúcias cenário, iluminação e figurinos, repassou as cenas do ajudante, ele mesmo interpretando o cliente, e consumiu horas da noite de insônia repetindo as suas falas, de forma a apurar a inflexão e verificar a estrita obediência às rubricas e marcações. Só não realizou o ensaio geral como pretendia; o ajudante estava exausto e precisava descansar o suficiente para prevenir qualquer risco de branco e ajudar nos retoques de última hora, em particular na revisão do posicionamento dos objetos de cena. Mesmo procurando manter o autocontrole, a angústia da estréia dominava o alfaiate; como um jovem ator que, na coxia, aguarda o terceiro sinal, ele repetia para si mesmo “Merda! Merda! Merda!”, inspecionava uma vez mais a disposição das peças e instrumentos sobre a bancada, refazia cada gesto e movimento da sua mise-en-scène, verificava o figurino no espelho e tornava a repetir, agora com acento francês, “Merde! Merde! Merde!”, talvez uma remissão à sua única experiência teatral, uma comédia de Molière, felizmente abortada antes de chegar ao palco do colégio... nem o título lhe ocorria.
Le malade imaginaire. A lembrança chegou ao mesmo tempo que o ajudante, logo orientado a cuidar dos preparativos no sótão e estar pronto para a entrada do cliente. Por sua vez, o alfaiate ocupou a bancada para refazer todas as atividades que antecederam o primeiro encontro, conferindo as medidas de peças já riscadas, cortando outras, chuleando, alinhavando um paletó há muito adiado, sentando à máquina de costura para arrematar o forro de um colete cinza; em cada tarefa buscava reconstituir o homem que fora até aquele freguês. Embora pudesse aproveitar a ocasião para colocar as encomendas em dia, alguns clientes já reclamavam dos constantes atrasos, não conseguia se concentrar o bastante, a não ser quando repassava as suas cenas ou inspecionava meticulosamente os elementos do cenário e do figurino – a posição do espelho e dos manequins, o lápis azul na orelha, o bloco de notas aberto na mesma página – ou se imaginava um ator aquecendo os músculos e a voz na coxia. “Merda! Merda! Merda!”
Três leves batidas na porta foram o primeiro sinal; os passos do ajudante descendo a escada, o segundo; o ruído da fechadura, o terceiro. O rigor com que, no fundo do palco, o alfaiate procurava interpretar o profissional totalmente absorto no trabalho não o impediu de levantar os olhos algumas vezes para acompanhar sorrateiramente a cena, tanto porque temia pela performance do ajudante quanto porque precisava estar preparado para a primeira deixa do cliente; no entanto, a repetição mecânica por parte do ajudante de cada gesto e de cada movimento o tranqüilizou. Mesmo o freguês, exceto por variações tão ínfimas que apenas os olhos de um especialista podiam notar, parecia ter ensaiado à exaustão o seu papel naquela peça, tal era a conformação com que se entregava ao déjà vu da cena; embora pudesse estar influenciado pela vis dramatica da sua própria criação, o alfaiate diria que até o terno do cliente era o mesmo do primeiro encontro.
Enfim o alfaiate já não representava um papel, vivia o homem que era antes daquele freguês; o primeiro impulso foi tirar as medidas, logo refreado pela obediência estrita do texto; era preciso seguir à risca as falas, os gestos e os movimentos definidos no decorrer dos ensaios. Como num ritual, após ajudar o cliente a se despir e colocá-lo na marcação adequada, o alfaiate dispôs as peças do paletó sobre a bancada e iniciou a montagem: primeiro a calça (atenção redobrada para com o cós e o gavião); depois o colete (os olhos fixos no encaixe perfeito das peças); por fim o paletó (como sempre soube pegar na almofada o número exato de alfinetes). Nada podia perturbar o esmero que dedicava a cada elemento; dir-se-ia que aqueles gestos, de tão precisos e parcimoniosos, eram realizados por um cego que, desde muito jovem, tivera as mãos e os braços amoldados pelo método. “O senhor permaneça onde está até que eu possa posicionar o espelho para termos uma visão do conjunto.”
“Merda! Merda! Merda!” As únicas palavras que ocorriam ao alfaiate por pudor não foram pronunciadas, transformaram-se num ruído que só sem pulmões se produz, um soluço, talvez uma risada; lentamente empurrou o espelho para um canto escuro, lentamente dirigiu-se para a bancada, lentamente manuseou os instrumentos do seu ofício à procura de amparo, lentamente os olhos atônitos percorreram os objetos do atelier até encontrar o cliente, quase um espectro, a cabeça inclinada para trás, o corpo completamente rijo. O alfaiate era agora como um ator solitário que, sob a luz do proscênio, esquece o texto do monólogo – o ponto adormeceu na primeira cena do segundo ato, a platéia já demonstra certa inquietação e sequer lhe ocorre improvisar, apenas espera por um blackout ou que desça a cortina. Acta est fabula!  
Três coisas impediram o alfaiate de desabar em cena aberta: primeiro, a quietude do freguês, a paralisia daquele corpo que, senão acalmava, ao menos mantinha a ação em suspenso; segundo, o seu empenho em revisar todas as variáveis que pudessem ter influenciado nas medidas do cliente; por fim, a irrefreável disposição do seu espírito para a procura de analogias, um vício que se sobrepunha até mesmo à dor. De imediato, a visão do freguês enfiado naquele descomedimento desencadeou comparações com uma série de objetos e imagens – um embrulho feito às pressas, as saias rodadas de uma mulher de duzentos quilos, um novelo após as unhas do gato, uma dessas fotografias antigas apresentando um menino aniquilado nos trajes de adulto, um balão inflando, a cúpula de uma catedral em ruínas, um pai desenhado pelo filho de cinco anos. 
“Um terno, senhor, nunca está completamente pronto, há sempre uma coisa ou outra para acertar” – um ausente pronunciou estas palavras, pois ao alfaiate jamais ocorreu romper o silêncio, absorvido que estava em determinar as semelhanças daquela vestimenta desmesurada com as fantasias dos palhaços e as roupas das aberrações dos circos de sua infância. Havia naquele enormidade de linhas e panos algo de uma vida separada do ordinário, algo de uma alegria explosiva e fugaz como um foguete, mas também algo da dor de quem só existe quando do espetáculo, depois fica invisível, algo de uma máscara cômica se desfazendo diante do espelho – com suas rugas, com seus lábios sem riso, com sua calva real – e que ninguém pode retocar.
A pala se esforçava para não despencar dos ombros, a braguilha entreaberta dava a ver os joelhos, as mangas por pouco não tocavam o chão, o colete parecia agasalhar o cliente como um xale avoengo; nem o somatório de todas as pences que fizera na vida seria suficiente para ajustar o cós à cintura; com a fazenda que sobrava das pernas da calça podia fazer outro paletó; era tarefa para dias recuperar os alfinetes utilizados na montagem, pois ou estavam perdidos nas dobras daquela terra ignota ou se esconderam do horror em algum acidente topográfico ainda não mapeado. Uma criança vestida com as roupas do pai tinha mais elegância; um Chaplin ou um Buster Keaton, mesmo após enfrentar um boxer, atravessar um campo minado e abater um ciclone, usava figurinos menos patéticos – aquele terno era uma gag mal realizada.
O alfaiate abaixou cuidadosamente os olhos, colocou a fita métrica em torno do pescoço, prendeu a almofada no pulso esquerdo, sem olhá-la, enquanto vencia os primeiros centímetros da distância incomensurável que o separava do cliente. Já não pensava em nada de preciso, mas tinha a sensação de que se demorasse mais para tirar o freguês daquele amontoado de tecidos ele se transformaria num dos objetos do atelier, pois a fixidez do seu corpo beirava o inumano, como se os músculos gradativamente fossem esquecendo até mesmo os movimentos involuntários.
“Ocorreu-me agora” – disse o alfaiate com uma intimidade que lhe causou menos estranheza do que vergonha – “contar-lhe que no velório de meu avô materno não houve qualquer comoção; era já bastante velho, não se podia nem se devia esperar mais, para uma vida discreta, do que uma morte discreta, diria até a morte ideal, sem sobressaltos nem viúva para as lágrimas, posto que minha avó falecera uns trinta anos antes. Contrariando as ordens de meu pai, não me aproximei do esquife logo ao entrar na sala, sentei numa cadeira isolada e me pus a ouvir os poucos adjetivos que os presentes reservaram ao morto... até que a mão paterna pousou sobre o meu ombro para só me abandonar junto ao caixão.
“Velávamos um estranho, não era de meu avô aquele corpo minúsculo como que à deriva entre as flores, não eram de meu avô aquelas mãos e aquele rosto, mas de uma criança prematuramente decrépita; eu sabia as dimensões dele, seria capaz de fazer-lhe um terno sem tirar as medidas, por isso me aproximei do pai para dizer que meu avô não estava ali, ele não caberia nos limites daquele caixão, e mesmo aquela família me era desconhecida. O pai me olhou severo, depois sorriu, colocou as duas mãos sobre os meus ombros e, com a condescendência que só os que já tocaram o céu têm para com os que, mesmo com as costas aliviadas de todo fardo, são incapazes de saltar um palmo acima do chão, disse em tom professoral: ‘Um homem tem que se haver com o próprio tamanho, filho’.”
O barulho da porta fez o ajudante descer às pressas do sótão, com gestos atônitos indagando se a representação já terminara, se o cliente já saíra, o que seria feito da última cena, afinal estava ansioso por pronunciar a sua única fala na peça, o gran finale; enquanto observava o movimento da rua através da vitrine, o alfaiate respondeu-lhe com alguns poucos sinais, a inércia de um diretor após a estréia unânime em apupos, o repouso nervoso de quem se preparava para uma longa jornada, ainda amedrontado com a agulha da bússola. “Falta-nos apenas a última prova, meu caro ajudante, a prova final” – disse o alfaiate, o tom melancólico de quem arrasta um horizonte, olhos fixos na porta como que esperando. Apenas para afirmar a sua presença, o ajudante pousou a mão sobre o ombro do alfaiate, sem saber o quanto pesava.
Fernando Fábio Fiorese: Poeta e contista. Autor de Dicionário mínimo: poemas em prosa (2003) e Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito (ensaio, 2003), dentre outros.

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