quarta-feira, 21 de março de 2012

Metamorfose(s) em texto e imagem: Ovídio, Franz Kafka e Peter Kuper

Aproveitando o gancho deixado pela indicação de leitura deste mês, proponho ao leitor um passeio por diferentes visões de um mesmo tema: a metamorfose. Aos interessados por literatura (principalmente a conhecida como clássica), o título da obra kafkiana, cuja leitura foi indicada pela Revista Encontro Literário, ecoa o de uma obra do poeta latino Ovídio - As metamorfoses.


Antes de prosseguir, um parênteses. Vamos ver o que nos diz o dicionário¹ sobre o tema? Trata-se de um substantivo feminino que indica basicamente duas coisas: as "mudanças de forma a que estão sujeitos principalmente os insetos e os batráquios", numa definição de cunho mais voltado à biologia, ou, em sentido figurado, as transformações e mudanças.

Visto deste ângulo, o título de ambas as obras é adequado ao seu conteúdo. Mas, apesar do eco apontado mais acima, entendemos que a semelhança entre a produção de Ovídio e a de Kafka para no título, visto que o tema da mudança de forma dos seres é retratado de distintas maneiras nesses textos.

Ovídio pede aos deuses que favoreçam seu intuito de contar, em um poema épico, como os seres assumiram novas formas, desde a criação do mundo (originado do Caos) até o império de Augusto: 


"É meu intento contar como os seres assumiram novas formas. Ó deuses - eis que fostes vós que os mudastes - favorecei o meu intuito, e conduzi, ininterruptamente, o meu poema, desde a origem do mundo até o meu tempo." (Ovídio, 1983, p. 11)

Podemos ver que se trata de um discurso mitológico. Ovídio escreve num momento em que já não se acredita tão piamente nos deuses que hoje estudamos como entidades mitológicas. Mas, dentro de seu objetivo de ajudar no movimento de afirmação do Império Romano, ele recorre aos mitos, colocando-os a serviço dessa afirmação. O que é importante é que percebamos que as mudanças dos seres são justificadas pelo caráter mitológico da obra. Além disso, como foram os deuses quem promoveram tais transformações,  elas podem ser entendidas tanto como punições (veja-se o mito de Níobe, quem teve seus filhos assassinados por Apolo e Diana em vingança à sua presunção de, sendo uma mortal, ousar dizer-se superior à deusa Latona)² quanto como recompensas (veja-se o mito de Miscelo, personagem que salvou-se de uma execução após a intervenção de Hércules haver mudado a cor das pedras que dariam a sentença)³. Dizendo de outro modo, podemos afirmar que, além de uma justificação, as metamorfoses respondem, na obra ovidiana, a uma finalidade educativa, consoante com a ideia de uma arte que pudesse a um só tempo deleitar e ensinar. É interessante notar, ainda, que o caráter dessas metamorfoses faz com que elas normalmente compareçam ao final das narrativas que constituem a obra, como um arremate ou acerto de contas.

Franz Kafka, por outro lado, está lidando com um discurso diferente do que viemos tratando até aqui. Na sua obra comparece o discurso alegórico. Não estamos mais no domínio do mito e tudo o que lemos deixa de se identificar com aquilo que imaginamos à primeira vista. Aqui, a metamorfose perde sua função exemplificadora e ganha um status diferenciado, simbólico. Por este motivo, na obra do autor tcheco a transformação do personagem se dá logo no início do relato e de maneira bastante abrupta. O leitor é colocado diante do fato sem nenhum tipo de preparação ou justificativa prévia, visto a situação ser apresentada já no primeiro parágrafo da novela:


"Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu-se em sua cama transformado num inseto monstruoso. Deitado de costas sobre a própria carapaça, ergueu a cabeça e enxergou seu ventre escurecido, acentuadamente curvo, com profundas saliências onduladas, sobre o qual a colcha deslizava, prestes a cair. Suas inumeráveis pernas, terrivelmente finas se comparadas ao volume do corpo, agitavam-se pateticamente diante de seus olhos." (Kafka, 2010, p. 11) 


É um parágrafo que introduz o leitor no texto com um choque. Apesar disso, pode-se ler sem maiores sobressaltos, situação que tende a nos levar à aceitação, com relativa naturalidade, do absurdo da situação criada pela transformação sofrida pelo protagonista. Ao contrário do que se vê no texto clássico, a metamorfose aqui ocorre como o ponto de partida (e não de chegada) em relação ao qual todos os outros fatos se desdobram. Ela tem um papel central e, no entanto, não precisa ser explicada. Seu significado maior transcende a simples explicação ou mesmo a possibilidade de que tal coisa pudesse ter acontecido realmente.

O caráter alegórico do texto kafkiano nos permite associar Gregor Samsa com vários seres "reais" que se encontram numa posição que desestabiliza o modelo da vida burguesa. Tanto faz que seja um inseto monstruoso, um ente familiar portador de alguma deficiência ou um desempregado. De igual modo, as reações da família do protagonista apontam para o desmascaramento das bases em que se apóia essa mesma vida burguesa. A própria noção de família se vai desfazendo ao longo do texto, com claro menosprezo dos pais e da irmã pelo personagem transformado em inseto e que, a partir de certo ponto, começa a importuná-los mais que ajudá-los na obtenção de sustento, bens e "realização" em termos sociais.


Para terminar, falaremos de mais uma metamorfose. Esta é, contudo, um pouco diferente. Não vamos apontar mais para mudanças sofridas por personagens, mas para uma mudança de registro artístico do tema. Focalizaremos brevemente a adaptação que foi feita desta novela kafkiana pelo artista gráfico Peter Kuper. Este transpôs para quadrinhos a história de Gregor Samsa, acrescentando ao texto (disposto não mais em parágrafos, mas em balões e outras representações afins) imagens que apontam novas possibilidades de interpretação para a obra. 


Chamamos a atenção para essas "novas possibilidades" por entender que a linguagem imagética oferece outro tipo provocações aos sentidos, ampliando a gama de significados que podemos construir a partir de um texto, coisa que nem sempre conseguimos fazer pela dificuldade de visualizar mentalmente o que está sendo narrado. Com certeza vale a pena conferir todos os trabalhos que comentamos brevemente nesta coluna., até mesmo para que cada um possa construir sua imagem das metamorfoses e, quem sabe, transformar a si mesmo através da leitura. 


Para quem maneja bem o inglês, fica a dica do site da editora Random House, responsável pela publicação original da obra de Kuper: http://www.randomhouse.com/crown/metamorphosis/


Notas:


1. Cf. definição do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, disponível em http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=metamorfose. Acesso em 21/03/2012

2. O mito de Níobe aparece no livro VI, d'As Metamorfoses, de Ovídio, referenciadas ao final deste trabalho.

3. O mito de Miscelo aparece no livro XV, d'As Metamorfoses, de Ovídio, referenciadas ao final deste trabalho.

Bibliografia: 

KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução de Lourival Holt Albuquerque. São Paulo: Abril, 2010

OVÍDIO. As Metamorfoses. Tradução e notas de David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 1983

Pós-escrito:




Não resisti à tentação de colocar uma pequena amostra do trabalho de Peter Kuper aqui neste post. Ao lado está uma das muitas imagens felizes (no sentido de serem absurdamente bem realizadas) da adaptação. É uma imagem que conseguiu captar o nível de opressão da vida moderna, tão grande que o sonho de um homem como Gregor Samsa é poder exercer essa opressão contra o seu chefe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário