sábado, 30 de junho de 2012

Conto selecionado no Edital 03 - 2012, categoria Adulta: "Mundinho branco de talco de vó"

Mundinho branco de talco de vó
por Luci Ponte*

 “Vovó, é a pomba gira?” Foi assim que aprendi a só perguntar algo quando se sabe o mínimo sobre o que se está perguntando e, principalmente, a quem se pergunta. Dia das mães era sempre assim na minha infância: viajávamos de Fortaleza a Sobral de carro para visitar a mãe de meu pai, minha única avó viva. Eram quatro longas horas que, para minha insípida felicidade infantil, passavam rapidinho. Tudo era festa: arrumar a mala, acordar de madrugada, comer paçoca com Coca-Cola no café da manhã em um bar de beira de estrada.
Lembro que da primeira vez que fui arrumar minha mala sozinha, pus as roupas com os cabides, pois não queria que se amassassem. Minha mãe, claro, deu um escândalo e desmanchou minha linda mala de areia. Pois bem, findo o trajeto, chegávamos à casa de minha vó, que quando conheci, já não era muito lúcida, trocava os nomes dos filhos, netos e passava madrugadas em claro, rezando no quintal junto ao muro da vizinha que ela jurava fazer “macumba” noite adentro. Minhas duas tias solteironas que moravam com ela, consequentemente, faziam também uma vigília noturna involuntária. Na verdade, elas vigiavam minha vó que, por vezes, atirava coisas na casa da vizinha: bacias de “água benta”, rosários ou até pedras.
Em geral, chegávamos à casa da vovó na hora do almoço e era um rebuliço só porque vovó sempre cismava que minhas tias não tinham feito comida suficiente e queria ela mesma cozinhar. Esse tumulto era logo controlado porque ela rapidamente encontrava uma outra pessoa para implicar. Entrar na casa da minha vó era sempre uma redescoberta de mim mesma pelos olhos dela. Aquela fortaleza frágil e cheia de certezas falsas fazia meu coração bater mais forte quando dizia “Isso é a Clarinha, Laura?” perguntando a minha mãe. “Tá uma moça”. Aí como de costume, eu pedia a benção, ela me abençoava e, antes que cogitasse seguir a nossa conversa, sua mente já havia escapado novamente para o seu mundinho branco com cheirinho de talco de vó.
Nosso relacionamento era assim, fragmentos de bênçãos em meio a almoços tumultuados de dias das mães. Logo nas primeiras visitas de que me recordo, pensava ser ali uma igreja, pois havia quadros, imagens e terços de todos os tipos e tamanhos espalhados por toda a casa. A sala clara e ventilada com suas cadeiras de balanço de macarrão de cores diversas, os azulejos decorados do piso e aquela cortina colorida arejavam minha mente infantil que olhava para aquelas imagens, tentando prestar a mesma reverência que alguns adultos. Meus olhinhos curiosos percorriam cada uma delas e até reconheciam algumas. Lembro-me claramente do quadro de nossa senhora, ela era linda e sorria para mim como nos meus sonhos. Mas tinha uma imagem naquele lugar que me intrigava. Era uma pomba branca em uma casinha de madeira escura com uma luzinha vermelha acesa sobre sua cabeça.
Não conseguia associar aquela figura a nada que havia estudado no catecismo. Fiquei intrigada por vários anos, mas, dessa vez, decidi ingenuamente perguntar, interrompendo a “conversa dos adultos”: “Aquilo lá no alto é a pomba gira?”. Que eu me lembre, foi a primeira grande oportunidade de ficar calada que eu perdi na vida. Iniciaram-se a partir daí gritos de repreensão de minhas tias, meu pai me dizia para não falar besteira e até minha vó saiu do mundinho branco de talco de vó dela para me dar um esporro, logo seguido de orações confusas: “É o espírito santo, minha filha!” “valei-me nossa senhora”, “chagas abertas” “Jesus amado”. Em seguida, rapidamente, como se nada houvesse acontecido, esqueceram-se de mim e voltaram à conversa de adultos, tumultuada como é de praxe na minha família. Começaram a se perguntar onde eu aprendera isso e de quem era a culpa. Minha vó escapou de novo para seu o mundinho branco de talco de vó e eu fiquei ali sem entender nada. Naquele dia, percebi que algumas das minhas perguntas não cabiam nas respostas pequenas dos adultos.



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* Luci Ponte é comunicóloga, formada pela Universidade Federal do Ceará e professora universitária no Rio de Janeiro. Ela atua como contista, poetisa, dramaturga e atriz. Dentre as peças que escreveu, destaca-se o espetáculo ‘Cidade dos Lázaros’, uma adaptação da obra de Augusto dos Anjos que estreou em Junho de 2012 no Rio de Janeiro. Tem contos, crônicas e poemas em diversas antologias e escreve em seu blog http://minhasemeadura.wordpress.com. Contato da autora: luciponterj@gmail.com

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