sábado, 30 de junho de 2012

Conto selecionado no Edital 03 - 2012, categoria Adulta: "Conto tirado de um poema de Bandeira"

Conto tirado de um poema de Bandeira
por Waldyr Imbroisi*

Lá estava João Gostoso diante da lagoa, ébrio, sóbrio já da vida, passo vacilante e voz ainda por sair. Era afinal sua última hora, e ali lembrava com um sorriso parvo do resto da noite, do pouco que teve de vida: seu riso trazia de volta o bar, os jovens, as garotas e o movimento daquele instante que apenas o poeta soube valorizar tanto, com três verbos só, o momento que o jornal não será capaz de captar com clareza amanhã, sobre o qual nem João sabia o que dizer, seu único idílio, sua única e efêmera Pasárgada, seu porquinho da Índia a anunciar-se tímido e escorregadio, a letargia da bebida a estuporar-lhe os músculos, a vivacidade da dança a empolgar-lhe a alma, a dissolução gradual do super ego que lançava-lhe a cantar, a doce loucura do final da vida, a dor pobre muito pobre e a agreste alegria de quem sabe que vai morrer. Não tinha mais nada que se lembrar, mas vinha-lhe à cabeça a contragosto as imagens dos dias, as dores no corpo, as humilhações sofridas nas palavras ásperas dos patrões e dos transeuntes, o peso a arquear-lhe as costas sem descanso e sem paz, a impossibilidade de fuga, Aqui eu não sou feliz, e vou-me pra onde? E toda manhã era sempre o mesmo, o mesmo arranhar nas costas e na alma, as mesmas aventuras desconcertantemente fastidiosas, com frequência a faltar-lhe na mesa café com pão, mas sempre passa caixa, passa carro, passa dor, passa agulhada, passa fome na soleira do barraco, ai, que vontade de chorar. Mas não chorava: vivia sub-sub-repticiamente, sem chamar atenção de ninguém, sem ser nada mais que o operário dos transportes de tantos alimentos de que ninguém dá conta, mas clamava humilde a ajuda do alto, nunca na missa porque domingo é dia de feira, mas Jesus Cristinho nem se incomodava com o pobre, se porque ele rezava em casa, se porque era um pecador ou era negro, não se sabe; soube-se só preterido, esquecido, quase vazio, ora, bastava de ser bicho a mendigar a piedade dos outros ou um pedaço de pão entre os detritos. Já chega. Agora a espera surda e expectorante se faz entre João Gostoso e a lagoa, ampla, de braços abertos, tão preparada para recebê-lo, tão cheirando a merda e a esgoto. Amanhã o jornal sairá com seu nome completo. Chamarão o pobre de alcoólatra. Irão vê-lo passar, de rabecão; alguns estarão no seu enterro, mas poucos terão como ele a tão presente certeza de que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade, traição. E lá vai ele: projeta-se no ar como uma pássaro, ganha o infinito num abraço carinhoso e completo e entrega-se às águas sujas, mórbidas, grossas e impudicas da Lagoa. Não se debate, não grita. Apenas aceita. E pensa do fundo da alma, embora talvez com distintas palavras: “Perdoai-me, transeuntes e leitores do jornal de amanhã, se espirrei-lhes um pouco dessa água e marquei a podridão suja da vida na roupa que acabastes de comprar”.

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Waldyr Imbroisi é mestrando do Programa de Pós Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz Fora. Interessa-se pelas aproximações de literatura e história e estuda literatura brasileira. Contato do autor: embroyler@gmail.com

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