terça-feira, 26 de junho de 2012

Temática negra em pauta: apresentação do Romanceiro da Abolição e do Canto dos Escravos

Não sei o que dizer aos amigos editores e, mais ainda, aos estimados leitores da Revista Encontro Literário pelo (constante) atraso das minhas colunas mensais. Até porque não me ocorrem outras explicações que não sejam a dificuldade em escolher os temas e, claro, uma excessiva dose de desorganização.

Bom, pode ser também uma espécie de mania que eu tenho e que o leitor mais atento já deve ter notado: dificilmente começo o texto indo direto ao ponto, e trato de alongar-me em "pretextualidades" que permitem que as ideias se acomodem e venham mais arrumadinhas para a página da revista.


Agora que todos passaram os olhos pela "oficina do autor", vamos ao que interessa: o tema da vez. Após homenagear, com atraso, o escritor Monteiro Lobato (veja a postagem a esse respeito aqui), faço outra homenagem pós-data: aos negros, cuja libertação da condição de escravos completou 124 anos no último mês de maio.


Pois bem. A história que quero contar começa em 1943, quando Aires da Mata Machado Filho (1909-1985), professor, filólogo e folclorista publicou O negro e o garimpo em Minas Gerais - um importante trabalho sobre os cantos de trabalho dos escravos bantos, recopilados por ele na região de São João da Chapada, distrito de Diamantina (MG). 

Esses cantos de trabalho, chamados vissungos, foram um marco no estudo etnográfico brasileiro, pois demonstravam que no nosso país não foram só os negros nagôs da Bahia quem deixaram contribuições linguísticas e culturais de grande importância, mas também os bantus trazidos a Minas Gerais. Ao publicar tal obra, Aires da Mata Machado recuperava um acervo cultural e rítmico importante para se compreender  um pouco melhor como se processou a formação da língua e da música que hoje temos como nossas, iluminando melhor nosso passado colonial.

Apesar de publicada há mais de 60 anos, estamos frente a uma obra que pode ser adquirida com relativa facilidade em edição da Itatiaia Editora (capa acima). Vejam aqui os resultados da busca pela Estante Virtual: http://www.estantevirtual.com.br/qtit/o-negro-e-o-garimpo-em-minas-gerais

Essa obra capital teve alguns desdobramentos. O primeiro que vou focalizar, é o poemário Romanceiro da Abolição, de Stella Leonardos, publicado em 1986 e premiado, na ocasião, com o terceiro lugar na categoria poesia do Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira. Para dizer a verdade, a autora não bebe apenas da fonte de Mata Machado, reportando-se ainda a cantos e outros achados de gente do naipe de Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo. Com um título e uma técnica poética que remetem ao conhecido livro de Cecília Meireles publicado em 1953, essa obra descreve a saga dos povos africanos em terras brasileiras.

Porém, ao contrário de Cecília, que busca compor poemas de intenção narrativa e dicção fluente, Stella Leonardos trata de buscar nos cantos dos negros as epígrafes e/ou os refrões de seus poemas, promovendo uma escrita cheia de quebras e atravessamentos, erigida como documento dos contatos interraciais e sem ocultar o jogo de forças que estava por trás de tudo. Com isso, desloca o foco da forma linguística ou mesmo de uma intenção estilística, e traz para o centro da cena aquilo que os próprios negros produziram e que deveria ser mais conhecido. Desnecessário dizer que eu considero ser este um livro que vale a pena ser lido. Ele também pode ser encontrado em uma busca rápida: http://www.estantevirtual.com.br/qtit/romanceiro-da-abolicao 


Deixo aqui um desses poemas para que vocês apreciem:



Com licença do curiandamba”...
Papai auê”...

Vissungos coligidos por Aires da Mata Machado Filho

CANTO NA NOITE FECHADA

Licença, curiandamba,
de mostrar pra vosmicê
nessa malamba de vida
saudade avoando ferida
nas asas de tatanguê?

                  “Papai auê
                  mamãe, papai auê
                Iô, fero a, siquê
                tequirombô maianê
              a ê, mamãe ê”

A noite banza, manganga,
com seu povo jeito noite,
riso morto, mar nos olhos
das estrelas de: por quê?

Passemos, agora, a outro desdobramento do trabalho do professor Aires da Mata Machado. Trata-se do disco O canto dos escravos, lançado em 1982 pela gravadora Eldorado, com registro em áudio de 14 dos cantos de trabalho recopilados e partiturados pelo pesquisador. No disco, os vissungos são entoados por Tia Doca, pastora da velha guarda da Portela, por Geraldo Filme, sambista paulistano, e por Clementina de Jesus, uma das cantoras brasileiras mais importantes no que diz respeito ao resgate das raízes da música popular de origem africana e dona de um timbre grave que evoca toda a ancestralidade dos cantos dos negros.


Trata-se, sem dúvida, de um trabalho corajoso, que vai na contramão das tendências mercadológicas que valorizam composições de gosto duvidoso e que se destinam unicamente a embalar um "remeximento das cadeiras" dos ouvintes. (Isto para dizer o mínimo e de modo respeitoso aos leitores.)

Tenho comigo que a audição do referido disco é uma oportunidade e tanto para conhecer e valorizar as "raízes do Brasil", normalmente tão esquecidas. Abaixo disponibilizo para audição uma das faixas do disco. Espero que gostem!


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