domingo, 7 de abril de 2013

Releituras


Por Renata Delage
Os livros guardados nas prateleiras de Maria Lúcia Ribeiro, vez ou outra, tornam a repousar em sua cabeceira. Sobretudo os clássicos, que, segundo a doutora em teoria da literatura, suportam várias leituras. "A releitura é, na verdade, uma nova leitura. Você escolhe um livro para revisitar um personagem ou para ver se ainda gosta dele e, muitas vezes, descobre que parece que nunca o leu", diz. Para ela, o primeiro contato com as linhas do texto servem ao "reconhecimento do terreno", a um mapeamento da história. Mas as diversas possibilidades de sentidos, os detalhes que se escondem em cada página, só são apreendidos posteriormente. "Não que a primeira leitura não seja capaz de te levar a alguma compreensão. Mas os sentidos mais amplos de tal obra vão sendo construídos sobre os sentidos iniciais", avalia.
"Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa, é um dos clássicos que está sendo revisto pela pesquisadora, assim como os escritos de Rubem Fonseca e Clarice Lispector. "Depois de alguns anos, estou amando lê-los mais uma vez", enfatiza Maria Lúcia, que diz dedicar boa parte de seu tempo à tarefa.
O hábito de reler livros e rever filmes - comum a muitas pessoas - despertou a curiosidade da professora Cristel Antonia Russell, da Amercian University, dos Estados Unidos. Com base na pesquisa publicada no "Journal of Consumer Research", que contou com entrevistas de pessoas de várias faixas etárias, a especialista identificou as razões para o que chamou de "reconsumo" de obras, bem como os benefícios da prática.
Segundo Cristel, o hábito pode estar vinculado à necessidade de encontrar camadas de significado mais profundas. O "reconsumo", mais que uma tentativa de reviver o passado, é uma busca que pode levar a grandes descobertas pessoais. O mercado se esforça para lançar histórias sempre frescas, mas, segundo constatou a PhD em marketing, deveria voltar seu olhar às velhas experiências, que são também aptas a abrir novas perspectivas.

A releitura de uma obra preferida permite o confronto entre as interpretações do material em distintas fases da vida. O estudo de Cristel cita como exemplo a história de um dos participantes, um pastor evangélico, que releu a Bíblia inúmeras vezes ao longo da vida. O pastor constatou que, de acordo com sua idade, interpretava as passagens de modo diferente, um sinal de amadurecimento.
Tal contraste entre o "eu atual" e o "eu do passado" é ocasionado pelos novos olhares que só vêm com a maturidade, segundo a professora do CES, mestre em psicologia, Ana Maria Mattos de Andrade. "Além da possibilidade de poder ter uma visão mais profunda sobre o tema e seus desdobramentos, as conexões que são feitas a partir de acontecimentos da atualidade estarão mais atuantes nessas novas interpretações", acrescenta.
O tempo foi fundamental para o trabalho do poeta e professor da Faculdade de Letras da UFJF, Alexandre Faria. Os versos escritos aos 17 anos só foram publicados 25 anos depois, em 2012, em "Lágrima palhaça", que tem selo da Aquela Editora. Os originais, esquecidos em um caderno com o desenho de um circo a lápis na capa, foram submetidos, segundo o autor, a um processo de "laminação". "Fui sobrepondo camadas de silêncio, e permanecem apenas alguns sons, ou imagens ou frases", constata.
Reler os textos - e lapidá-los tantos anos após sua criação - foi para o poeta um "reencontro". "Um reencontro com alguém que tinha sido e que - felizmente - não deixei de ser." A releitura despertou questionamentos sobre o envelhecimento e, em mesma proporção, sobre o rejuvenescimento, já que tantos traços pessoais permanecem, de certa forma, intactos. Já em relação à poesia, o autor revela ter se deparado com uma transformação brutal. "Eram versos longos, cheios de rimas", conta. "Foi um desafio rever o moleque de antigamente."
Em seu processo de criação, o poeta destaca a releitura constante, essencial ao fechamento do trabalho, mas não cultiva o hábito de rever sua obra após a publicação. "Acredito que depois de publicado meu trabalho alcança uma cristalização." O mesmo não acontece, conforme ele, com outras obras literárias, cujo processo de descobertas permanece em aberto. "Machado de Assis, por exemplo, é um dos autores que sempre releio", diz.
Outros motivos são apontados para explicar o recorrente hábito de revisitar obras literárias ou cinematográficas com frequência. Pesquisas apontam que indivíduos "consomem" o mesmo produto porque o cérebro já sabe a recompensa conquistada a partir desse contato, como a satisfação, o relaxamento e a alegria. "Muitas vezes as obras de arte se relacionam a momentos marcantes, são pontes que nos levam às sensações de determinada época da vida", ressalta a psicóloga Ana Maria. "A arte tem muito a ver com a contemplação, processo que pode levar tempo e ser repetitivo", acrescenta.
A repetição aparece como um método de estudo e memorização, que culmina em aprendizagem, outro caminho que nem sempre é consciente. "Nisso a criança é muito sábia", pontua Maria Lúcia Ribeiro. "Quando ela escuta o disquinho de músicas dela ou assiste a um DVD de um desenho animado, não dá muita bola da primeira vez. Mas ela repete, repete, repete e começa a se encantar com ele, logo o sabe de cor", exemplifica. "Se você conta uma história de determinada forma e, em uma segunda vez, muda alguma coisa, ela vai te dar uma bronca. Ela insiste porque, assim, aprende. Ora, conosco não poderia ser diferente", conclui Maria Lúcia.

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